domingo, 28 de setembro de 2008

Cegueira por opção

Ele era inteligente, não restava dúvida. Mas tinha também um defeito: era incapaz de detectar as próprias imperfeições. Seguia todo o manual do bom comportamento na teoria, analisando-se mais do que é natural alguém fazê-lo, pelo puro prazer do espetáculo. Frases de efeito, ele as adorava. É certo que ele acreditava escrever muito bem, aliás, seria difícil descobrir algo em que ele acreditasse ter limitações. Mas as frases vazias de sentido mostravam o quanto ele tentava aparentar algo que não era. Contradições mil, talvez fosse preciso reler para tentar entender afinal qual era a pretensão. Mas não havia paciência para isso.
Obviamente, os que não enxergavam todas as qualidades que ele certamente possuía estariam comentendo o pecado da inveja. Não era possível que alguém questionasse nenhuma de suas atitudes, embora, é claro, ele também fosse uma pessoa que acreditasse no diálogo, e que não queria impor sua opinião.
Muitos tentaram conversar com ele, fazê-lo perceber o que estava acontecendo ao seu redor. Mas ninguém o entendia, e ele sempre estava mal. Há pessoas a quem o sofrimento faz mais bem que mal. Ele era uma dessas pessoas. Gostava de chamar atenção, da maneira que fosse. Acabava tendo atitudes que seu sobrinho pequeno não teria, mas ele jamais enxergaria isso.
Ele saiu de casa, acreditando estar pronto para a vida. Mas a vida era cruel demais. As pessoas enxergavam defeitos umas nas outras, e ele não os tinha, por isso às vezes o interpretavam como arrogante. Ele conheceu alguém que acreditou na sua inteligência inicial e na carência demonstrada pelo sofrimento opcional, e se envolveu.
Dois meses depois, ela estava esgotada. Mesmo que ele não a sugasse, não cobrasse mais do que ela era capaz de dar e não fosse demasiado insistente, ela acabou tendo a impressão de que ele era assim, e preferiu romper antes que enlouquecesse. Ele gentilmente aceitou, embora todos os seus amigos fossem ficar sabendo de como ele havia terminado o relacionamento com uma garota que não dava a mínima para os sentimentos dele, que tanto a amava e se dedicava a ela.
Em seu emprego, ele sempre fazia questão de mostrar para sua chefe o quão ela era debilitada para o cargo que exercia, quando ele mesmo podia realizar as atividades dela. Surpreendentemente, foi demitido. Ele não conseguia entender como alguém demitiria um profissional como ele. E mais uma vez, entrou em depressão. A situação era cômoda. Alguns ainda se comoviam, e passavam a se dedicar a ele com exclusividade, até que a crise passasse e ele voltasse a ser exatamente como era. Outros, por sua vez, tentavam inutilmente retirar a venda de seus olhos. Mas ela não cederia nunca.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Aquela-que-pensava-que-sabia

Ele tinha a mania, a quase extinta mania de escrever. E sua criatividade o fazia escrever sobre tudo, de todas as formas. E sempre se surpreendia com os resultados de sua pena arranhada no pergaminho que ele guardava com carinho. Sem que ele soubesse, as pessoas tinham acesso a seus devaneios, e se identificavam com eles. Ele sempre gostou muito dela, e ela o lia com freqüência.
Depois de alguns textos, ela acreditou tê-lo desvendado. Mal sabia ela que não passara nem perto. Ele tinha seus truques, sim. Truques que gostava de preservar. Talvez a forma de rabiscar, que lhe era peculiar e da qual não abria mão. O fato é que os leitores ávidos tentavam abordá-lo, descobri-lo, e ele mantinha sempre a fórmula da simplicidade.
Ela não acreditava que toda aquela emoção poderia ser advinda apenas da imaginação, e de fato não vinha. Contudo, julgava ele, as experiências vividas não precisavam ser meticulosamente traduzidas uma a uma, em cada texto, em particular.
E nem tudo era mesmo real. Mas enfim, havia quem não acreditasse. Nem mesmo ele saberia dizer com eficiência quais teriam sido suas inspirações durante os longos metros de pergaminho que, desdobrados, invadiam seu quarto. Talvez ele se decifrasse um pouco a cada texto. E se divertia também. Mas embora nem mesmo ele soubesse precisar como surgia sua obra, parecia ter gente que sabia fazê-lo com perspicácia.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Aquele-que-não-sabia-de-nada

Ele talvez fosse uma pessoa irritante. Para começar, não sabia seu nome. Cresceu então sem saber de muita coisa. Não sabia o que gostava de comer, nem se gostava de comer. Não sabia o que queria da vida, não sabia como se sentia e nem se sentia alguma coisa.
Ele também nunca soube se era relevante no mundo, e também não parecia fazer questão de saber. Ele simplesmente não buscava conclusões. Sua vida tomava um curso que ele não sabia nem queria definir. Ele vivia por viver, e deixava-se viver assim.
Seu envolvimento com as pessoas era sempre um mistério, ele nunca sabia o que sentia por elas. Quando eram amigos, nunca sabia a intensidade daquele sentimento. Quando amantes, não sabia se estava apaixonado. Ele tentava não se incomodar com isso tudo, e parecia que também não sabia se incomodar.
O fato é que essa incerteza contínua às vezes o irritava. Mas para variar ele simplesmente não sabia como modificar aquela situação. E por comodismo, aprendeu a lidar com a dúvida. Ele gostava quando tentavam mostrá-lo que ele sabia alguma coisa. Mas ele sabia não saber.
Em toda sua dúvida, porém, ele tinha certeza que não saber das coisas o fazia menos preocupado com tudo. Como ele não saberia lidar com qualquer situação, para ele era fácil não ter domínio sobre ela. Um dia, porém, ele acordou achando que sabia. Ele só não conseguia identificar o quê.